terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Moralidades e Super-Heróis, Por que o mundo precisa do Superman?

O filme Superman Returns, de Bryan Singer, traz à tela a velha mitologia do "homem de aço" e a idéia do "salvador" é reavivada. A narrativa que fecha a trilogia dos dois primeiros filmes (de 1978 e 1980), de Richard Donner - opção do diretor atual que ignorou os outros dois filmes seqüentes também estrelados pelo ator Christopher Reeves - gira em torno de os seres humanos precisarem ou não de um super-herói, um semideus para protegê-los. Com a globalização e o mundo cnectado numa grande rede, a proteção vai além dos limites da fictícia cidade de Metrópolis, estendendo-se a todo o planeta. Na trama, a inquieta repórter Lois Lane, incoformada com a inexplicada ausência de cinco anos do herói, escreve um artigo intitulado Por que o mundo não precisa do Superman. Com o seu retorno, surge o processo de contra-argumentação que vai mostrando ao espectador que os seres humanos precisam, e muito, do "último filho do planeta Krypton".
Além de o filme ser uma ótima diversão para quem é fã do gênero, faz-nos refletir sobre questões há séculos abordadas, desde que Aristóteles afirmou que todo ser humano, não importa como, sempre busca a felicidade e que essa busca compreende um projeto de vida que tenta responder à pergunta: que vida vale a pena ser vivida? - questionamento até mesmo do próprio personagem.
Para o filósofo Paul Ricouer, felicidade é viver com o outro e para o outro em instituições justas. O personagem Superman parece ter essa mesma concepção, pois persegue a justiça, nunca mente, luta contra a opressão e tirania, preocupa-se realmente com os humanos e tem laços profundos com sua família.
Bryan Singer honra o mito de Superman, estabelecendo comparações marcantes entre o personagem e Jesus Cristo - processo já iniciado por Donner nos outros filmes - apresentando simbolicamente a crucificação (há várias cenas que mostram Superman flutuando no espaço com os braços abertos em posição de cruz), morte e ressurreição, além do binômio Pai-Filho. Na visão do diretor, o "homem de aço" é, uma exploração de nossa fascinação pela figura icônica Superman/Jesus Cristo (Para Freud, a religião seria um meio de vazão a emoções desagregadoras. O antropólogo Lienhardt diz que a religião é uma forma de saber a respeito de certas situações da vida humana e de como lidar com elas.).
Superman é o ultimato das fantasias, pois não precisa de nenhum artifício, já que é superforte, veloz e voa. É o perfeito super-herói, mas é também impregnado de humanidade: "ainda que tenha crescido como um ser humano, você não é um deles", diz um dos fortes ensinamentos de Jor-El ao filho. É alguém capaz de se relacionar com as pessoas, amar e sofrer com elas. A essência do filme está em entender o que essa figura representa para as pessoas, por que continua sendo relevante e qual impacto provoca.
Apesar do clima nostálgico e ingênuo, no qual as pessoas tentam cotidianamente viver suas vidas simples e não serem incomodadas pela corrupção e injustiça, a história dá um salto para o presente, investigando a relevância que Superman teria em nossa sociedade. O dilema é do próprio herói que, ao retornar do auto-exílio, concentra-se no papel de salvador, abraçando essa causa com deveres a cumprir acima de tudo. Na filosofia de Kant, encontramos os imperativos categóricos, constructos de pensamento que primam pelo dever como condição do processo moral, indicando que a vida humana deve ser preservada acima de todas as coisas.
Nessa seqüência, a história dá uma tonalidade de mártir ao personagem, que vem "redimir os pecados do mundo". Freud explica que as figuras sagradas do cristianismo seriam como uma "projeção" de nosso modelo de família. Assim, o Deus cristão seria o pai que ama seus filhos, mas que precisa puni-los quando eles erram. Kal-El/Superman é o único filho de Jor-El, que envia à Terra porque os seres humanos "querem ser e possuem uma grande capacidade para o Bem, só precisam de uma luz para mostrar o caminho..."(Fala de Jor-El).
Num contexto cinematográfico tão impregnado de super-heróis, os roteiristas escolheram para Superman Returns temas mais interessantes e importantes, enfrentados por todo ser humano: referentes à ética, à responsabilidade social, à justiça, à noção de destino, às virtudes clássicas, ao significado do amor e da família.
No processo de desenvolvimento moral, desde cedo a criança percebe que qualquer coisa que valha a pena não é fácil de ser obtida, pois exige autodisciplina e sacrifício. Nos dias atuais é importante o exemplo abnegado de Superman que recupera valores clássicos de dignidade e honra, além da persistência e altruísmo.
A moralidade pressupões escolhas e o personagem demonstra o conflito constante. Apesar de ser capaz de se emocionar como um ser humano, Superman racionaliza as decisões e, com enorme capacidade empática, age sempre em função do outro. Autores como Piaget e Kohlberg são consistentes em explicar que no desenvolvimento moral é imprescindível a cognição e a descentração.
A construção de uma personalidade moral e um projeto ético de vida se dá a partir de modelos positivos e possibilidades de vivências que experimentem a solidariedade e a cooperação. Esta construção imprime respostas que não só à pergunta citada anteriormente - Que vida vale a pena ser vivida? - mas também à pergunta fundamental da existência humana: Quem eu gostaria de ser?
Por Denise D'Aurea-Tardeli, professora universitária,
doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano pela USP, mestra em Educação pela USP
e especializada em Educação Brasileira.
Fonte: Revista Psique ciência&vida.
Ano II nº 14, p. 50-51

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