quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Diários de Prostituta

"Fenômeno Bruna Surfistinha revela visão convencional e moralista da prostituição, mas ajuda a romper estereótipos e criticar a hipocresia da sociedade."
Bruna Surfistinha é o nome de guerra de uma jovem prostituta que em 2005 começou a registrar seu cotidiano em um blog na internet. Com inesperada receptividade dos internautas, o site chegou a receber 15 mil visitas diárias, fato que chamou a atenção da grande imprensa. No mesmo ano ela publicou O doce veneno do escorpião - O diário de uma garota de programa (Panda Books), que rapidamente tornou-se best-seller, com mais de 200 mil exemplares vendidos, e mereceu artigo no The New York Times. Os direitos autorais foram comprados por editoras de mais de dez países e um roteiro cinematográfico está sendo preparado. Em 2006, a autora lançou seu segundo livro: O que aprendi com Bruna Surfistinha - Lições de uma vida nada fácil (Panda Books), agora assinado por Raquel Pacheco, seu nome verdadeiro. Na trilha do sucesso, foram lançados em 2006 A agenda de Virgínia (Planeta), assinado pela ex-prostituta espanhola Alejandra Duque, e O diário de Marise (Matrix Editora), de Vanessa Oliveira, uma ex-garota de programa de Camboriú.
No caso de Surfistinha, os dois livros mostram o percurso de uma menina de classe média que entra na prostituição e é resgatada por um "verdadeiro amor": um ex-cliente que por ela se apaixona e abandona mulher e filhos - fato amplamente explorado por revistas e programas populares na televisão. A esposa abandonada, a comissária de bordo Samantha Moraes, aproveitou a publicidade e escreveu sua versão da história: Depois do escorpião: uma história de amor, sexo e traição (Editora Seoman, 2006). A repercussão do fenômeno Bruna Surfistinha suscita idéias sobre a pornografia e a prostituição, sobre a escrita como expressão e simbolização organizadoras do psiquismo, bem como sobre as autobiografias como gênero literário.
EROTISMO E CULTURA
Embora a pornografia tenha longa tradição histórica, não é fácil defini-la. Pode-se dizer que é a representação de comportamentos eróticos cujo objetivo é provocar excitação sexual, com ou sem preocupação estética formal. Sua expressão mais antiga está ligada a canções lascivas entoadas nas orgias dionisíacas gregas. Representações gráficas, como as encontradas em Pompéia, mostram sua presença no Império Romano. O texto clássico do poeta Ovídio (47 a.C.-17 d.C.) intitulado Ars amatoria (A arte de amar) é um bom exemplo de pornografia escrita na Antigüidade.
Na Idade Média, ela se difundiu basicamente de forma oral, por meio de canções que satirizavam a luxúria de homens e mulheres, supostamente castos, da Igreja. Uma exceção é o Decameron, coleção de novelas escrita por Giovanni Boccaccio (1313-1375) entre 1348 e 1353, que ilustra a expressão erótica na literatura da época. A invenção da imprensa deu novo alento à pornografia escrita, apesar das sanções legais. O mesmo ocorreu depois da invenção da fotografia e do cinema, e, mais recentemente, da internet.
A pornografia tem sido objeto de perseguições morais e religiosas por se acreditar que ela tende a corromper ou depravar, além de induzir à prática de crimes sexuais. Por isso a distribuição e a posse de material considerado pornográfico são vistos como crime em muitos países. Essas idéias, no entanto, têm sido combatidas com argumentos legais e científicos. A ampla difusão da pornografia pela internet fez caducarem muitos dos controles sociais até então eficientes, mostrando o caráter fantasioso dessas idéias. Com base no que elas afirmam, a rede mundial de computadores deveria ter feito os crimes sexuais crescerem de forma extraordinária - o que não ocorreu.
PORNOGRAFIA LIGHT
Os livros de Bruna Surfistinha terminam por se afastar daquilo que é mais específico das produções pornográficas - a provocação, franca e direta, do desejo sexual, cujo poder eventualmente transgressivo a muitos assusta. Eles contam uma história romântica, cheia de conselhos e apimentada por uma pornografia light. Ao mostrar uma prostituta que trilha o caminho de erros e é redimida pelo amor, ela reafirma uma visão convencional e moralista da prostituição, acomodada aos estereótipos do imaginário coletivo, sendo possivelmente essa uma das razões de seu grande sucesso comercial. Por outro lado, a prostituta resgatada pelo ex-cliente é uma das modalidades de escolha de objeto por parte dos homens, como Freud descreveu em Contribuições à psicologia do amor, de 1910. Determinados homens se apaixonam por prostitutas porque as equiparam às suas mães; a prostituta é uma "mulher de outros homens", assim como a mãe é a "mulher de outro homem", o pai.
Se "Bruna Surfistinha" é o personagem criado por Raquel Pacheco, "Raquel Pacheco" por sua vez não deixa de ser também outra ficção, dessa vez involuntária, como ocorre na maioria das autobiografias. A imagem de si mesmo construída pelo autor atende mais ao desejo de mostrar uma bela figura para a posteridade do que o de ser fiel aos fatos. Mas o que ocorre nesse tipo de narrativa reflete uma verdade mais profunda, a decorrente da divisão interna de nosso psiquismo em função do inconsciente reprimido, o que nos impossibilita uma auto-percepção adequada.
De certa forma, os livros de Bruna Surfistinha quebram um estereótipo sobre a prostituição. Sendo uma moça de classe média, sua realidade não está tão distante da de seus leitores, o que não ocorre com os relatos de prostituição feitos por aquelas que ali chegaram por pressão direta da miséria socioeconômica. Segundo a autora, foi a miséria psicológica que a levou para a prostituição, isto é, o trauma decorrente da descoberta de sua adoção. Levando em conta tal explicação, sua prostituição decorreria de graves problemas identitários, já sinalizados por sintomas anteriores como obesidade, cleptomania, idéias de suicídio e uso de drogas. Isso estabeleceria a conotação sintomática de sua conduta rumo à prostituição, o que contradiz sua tentativa de apresentá-la como um trabalho comum.
Talvez não seja excessivo relacionar a proeza de Bruna Surfistinha com as construções teóricas de Lacan sobre o escritor irlandês James Joyce (1882-1941), em que afirma que, para o autor de Ulisses, a escrita ocupou o lugar vacante da função paterna, evitando a eclosão de uma psicose. Da mesma forma, é possível que Bruna Surfistinha tenha usado a capacidade de escrever para organizar e simbolizar o caos psíquico, e assim escapar da loucura.
Vale sublinhar ainda a hipocrisia em relação à prostituição, algo que as autoras desse gênero de livro costumam mencionar. A atitude da sociedade em relação ao assunto é muito ambígua. Todas as vezes que a prostituição é penalizada e as prostitutas perseguidas, dificilmente ocorre o mesmo a seus clientes. Algo semelhante acontece no combate à corrupção e ao tráfico de drogas. Demoniza-se o traficante ou o corrupto, ignorando-se que eles atendem à demanda de mercados milionários. A prostituição, a corrupção e o tráfico de drogas são inegavelmente encarados pela sociedade de forma dissociada e hipócrita.
Por Sérgio Telles, psicanalista, é autor de Fragmentos clínicos de
psicanálise (Casa do Psicólogo/EdUFSCar, 2004), O psicanalista
vai ao cinema (Casa do Psicólogo/EdUFSCar, 2005) e Visita às
casas de Freud e outoras viagens (Casa do Psicólogo, 2006).
Fonte: Revista Mente&Cérebro.
Ano XIV nº169, p. 18-19

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